Dançar e conversar com a diferença
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Dançar e conversar com a diferença
Eu tinha nojo das pessoas com eficiência. Até ao dia em que vi uma menina com paralisia cerebral a dançar com a sua professora no Brasil. Nesse momento eu decidi que queria aliar a dança com a deficiência, mas eram duas áreas novas para mim. Por esse motivo, decidi vir para Portugal estudar dança e fui convidado para dar uns workshops na Madeira. Pensava que depois dessas aulas eu voltaria para casa, mas fui ficando e em 2001 fundei a companhia Dançando com a Diferença.” Este pequeno texto não faz jus à história de Henrique Amoedo, fundador da companhia no Funchal, na Madeira, assim como o responsável pela criação da primeira companhia de dança inclusiva de cariz profissional no Brasil. No momento em que tomou a decisão de trabalhar com duas áreas desconhecidas para ele, Henrique Amoedo sentiu que tinha um “anjo e um diabo” a puxar por ele. Será difícil adjetivar qual dos dois ganhou, uma vez que se considera a pessoa mais preconceituosa. E explica porquê.
“É como se o meu preconceito fosse tão grande ao ponto que não posso permitir que eles sejam dessa forma. Então tento mudar aquela imagem que eu tenho noutra coisa”, contou Henrique Amoedo. E é no trabalho que a companhia desenvolve no dia a dia que o criador de Dançando com a Diferença conseguiu perpetuar essa mudança. Maria João Pereira, sentada na sua cadeira de rodas, contou que está no grupo há três anos e que viu no trabalho por eles desenvolvido um outro meio para comunicar. “Não há só o meio verbal”. Em conjunto, todos adquirem novas competências, como o comunicar, mas também aprendem como apanhar um autocarro, como cozinhar, viajar. Aprendem a ser autónomos. “Seu eu consigo fazer em palco, também consigo fazer fora dele”.
É por causa do trabalho desenvolvido fora do palco, que Henrique Amoedo afirma que os “espetáculos não são o fim, mas o meio para atingirem os seus objetivos”. Viajar é uma componente importante na aquisição de competências. Como por exemplo, quando Dançando com a Diferença foi à Polónia e teve a oportunidade de visitar o campo de concentração de Auschwitz. Esta oportunidade surgiu no âmbito de um projeto europeu em que juntava bailarinos de diferentes países e, através da dança, o grupo aprendeu a história da II Guerra Mundial. Joana Caetano, no grupo há dez anos, após ter visitado o campo em Cracóvia, criou uma pequena coreografia. Pelos movimentos criados pela bailarina, o espetador é capaz de identificar a fome, a sede, as cartas escritas pelos presos e a morte. Hoje um grupo de 100 bailarinos está a ensaiar essa mesma coreografia para apresentar no Brasil.
“É uma família”, afirma Telmo Ferreira, no grupo desde 2001, atual diretor e professor de dança. “É difícil separar o tempo dedicado à companhia e à vida pessoal, porque eu posso ir sair à noite com a Joana e ir à praia com a Maria”. Para Telmo Ferreira, que cresceu numa família onde viviam 23 pessoas e onde era obrigado a levar dinheiro para casa todos os dias, viu em Henrique Amoedo a figura paterna. “Eu nunca gostei de estudar e era visto como imperativo e mal criado”, conta. “No início, eu e o Henrique não nos dávamos bem porque eu cheirava a chulé, ele obrigava-me a lavar os pés e eu não queria”. Mas hoje trabalham em conjunto e para o mesmo objetivo.
Acabar com o preconceito é um dos propósitos da companhia. Se no início Dançando com a Diferença era rotulada como o grupo de pessoas deficientes, hoje é vista como uma companhia profissional de dança. O fundador da companhia conta que não foi fácil dar início ao projeto em Portugal e que, por várias vezes, era visto como uma “loucura”.
No sentido de dar a conhecer o projeto desenvolvido por Henrique Amoedo, Fátima Alçada, responsável pela direção artística do Centro de Arte de Ovar (CAO), propôs que visitassem os dois centros de apoio ocupacional de Ovar e Estarreja. “Gostava de permitir às pessoas que estão nos centros a oportunidade de ver outras formas de trabalhar”.
Responsável pela programação do CAO, Fátima Alçada levou ontem à noite à cidade o espetáculo Doesdicon de Tânia Carvalho, interpretado por bailarinos de Dançando com a Diferença. Contudo, e assim como o trabalho desenvolvido pelo grupo, o espetáculo em Ovar foi também um meio para atingir o fim. Na quarta-feira à tarde, Maria João Pereira, Joana Caetano, Telmo Ferreira e Henrique Amoedo estiveram na Cercivar para uma troca de experiências e repetiram na Cerciesta, em Estarreja, na quinta-feira de manhã.
“Queria derrubar barreiras e preconceitos. Quando vemos um projeto que faz tanto sentido como este, gostaríamos que ele fosse replicado”, explica Fátima Alçada. Artistas foi a palavra usada pela diretora artística do CAO para descrever o grupo e é assim que Henrique Amoedo quer que sejam vistos. “O espetáculo é coreografado pela Tânia Carvalho e qualquer espetador que conheça o seu trabalho consegue reconhecer os seus traços no espetáculo”. Fátima Alçada realça o facto da deficiência não ser suprimida na totalidade, “mas isso não é importante. Quando eu estou a ver um espetáculo da companhia Dançando com a Diferença eu estou a analisar a luz, a música, o movimento de igual forma que estaria se estivesse a ver um trabalho de outra companhia”. E acrescenta: “É interessante que o grupo nunca se decidiu pelo fácil, para serem vistos como coitadinhos. Os espetáculos são difíceis, como assim o devem ser”.
Na opinião de Henrique Amoedo existe uma confusão no significado de dança inclusiva. A expressão não significa uma dança onde estejam pessoas com e sem deficiência, mas sim tudo o que está para trás. Acabar com os rótulos, com os preconceitos, permitir que as pessoas tenham autonomia no seu dia a dia, a aquisição de competências em diferentes níveis. É para alcançar estes objetivos que o grupo trabalha.
Artigo de: Rita Lima
Fotografias de: Manuel Vitoriano
Fonte: PONTOeVÍRGULA - Informação Digital